sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

O que os bichos não dizem mas fazem: 2. a Ratita.

Eram vários de riscados e matizes diversos. Ele tinha um ar enfezado. Tenho uma vaga ideia (em geral, só tenho vagas ideias) que "enfezado" significa reles, pequenitotes. Mas olhando de repente para a palavra (porque as palavras vêem-se melhor quando se olha que quando se escuta) entrevejo a etimologia a rachar a palavra ao meio e concordo: ele era realmente um "merdas", um gato sem expressão nem notoriedade.

Pus-lhe o nome de Ratito. Cresceu humilde e submisso à sombra do irmão Laranjinha. Só lhes distingui o sexo quando apareceram ambas pranhas com os mamilos parecendo ventosas alinhadas a apontar o chão.

Ocupou os vãos do contentor para abrigar a ninhada e a Laranjinha teve que ir parir longe. Teve os filhos com competência e apresentou-mos cheia de orgulho. Nunca os largou. De dia, escondia-os na rotunda dos cedros onde podiam apanhar sol sem serem surpreendidos. Trazia-os à hora das refeições e punha-os atrás da sebe de ligustos sabendo que lhes poria a ração a dois palmos das nariguetas. Provava primeiro e afastava-se, voltando apenas para rapar as sobras. Aleitou até tarde.

Brincava muito com eles. Ainda brinca com o Fofinho e a Farrusca. Estes são grandes, anafados, confiantes e espertos a contrastar com os primos que têm metade do seu tamanho, são tímidos e pouco devem à esperteza.

Comparando as duas gatas vem-me à memória as experiências de Harlow (1958) em macacos rhesus com a mãe de pelo e a mãe de arame. É que, para desenvolver adultos saudáveis, o importante não é alimentar mas dar carinho e conforto.



The Nature of Love, Harry F. Harlow, 1958, First published in American Psychologist, 13, 673-685.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

O que os bichos não dizem mas fazem: 1. a Laranjinha.

Conhecem os "meus" (não é possessivo, é apenas referencial) bichanos actuais. Temos uma família constituída pelos meus seguidores e a tia Laranjinha. Há que acrescentar-lhe o Black que parece ser de muitas famílias ao mesmo tempo e não tem paternidade confirmada em relação a nenhum dos menores, salvo a Farrusca em relação a quem pende uma paternidade putativa.

Pondo a coisa a claro, os meus seguidores são a mãe Ratita e os seus dois filhos, o Fofinho e a já mencionada Farrusca, também conhecida por a Bailarina.

Tem, cada um, características que lhe são exclusivas o que faz deles Pessoas. Assim mesmo: com um P grande. E as marcas a que me refiro não são físicas, são morais.

Comecemos pela Laranjinha. Deve o nome, que lhe pôs o Daniel, a uma minúscula mancha alaranjada no alto da cabeça. De resto é de cinzento tigrado, como a irmã Ratita e outra irmã sem nome nem marcas particulares, mais estreita e alongada que a Ratita, que aparece muito raramente. As três são filhas da mesma ninhada da Maria, há muito desaparecida, tal como o Bolinha e o Mião, os irmãos machos que foram fazer pela vida para outras paragens.

A Laranjinha é, de seu particular, uma excelente caçadora, gata vadia, ladra atrevida e rufia. De pequena vinha comer com os seus irmãos da comida de lata que lhes punha nos pratos. E ficavam por ali no repasto sob o olhar vigilante da Maria - sempre com um olho nos perigos distantes e o outro posto em mim - tão próximos que me permitiam uma, quando muito duas festinhas nos pelos sedosos. Não a Laranjinha, que me mostrava os dentes e arredava. Numa das minhas infelizes abordagens àquela pequena fêmea, tão arisca e tão cheia de personalidade, deitou as gadanhas à mão que a tentava acariciar e puxou como quem esventra um coelho. Tendo a mão ensanguentada e ferrada, dei-lhe um piparote com a outra disponível e projectei a gata à distância de umas duas ou três passadas largas. Daí para cá olhamo-nos com desconfiança e distanciamento.

As gatas engravidam ao mesmo tempo e permanecem próximas com as suas ninhadas para se auxiliarem mutuamente. Não misturam as crias no mesmo ninho mas ficam por perto umas das outras. Quando há movimentações, e todos os dias é preciso ir à caça para satisfazer doze pequenas bocas, revezam-se nas funções de caça e de guarda. Juntam as ninhadas no sítio com maior protecção e, enquanto uma as protege, muitas vezes auxiliada por um pai que sabe quando há-de aparecer, a outra sai para uma incursão venatória. As refeições são diversificadas: na maior parte, a dieta é coelho. O desgraçado é aberto e despido da sua manta de pelo, são-lhe abertos alguns orifícios nos locais apropriados, e vai sendo esvaziado, primeiro do sangue, depois da gordura, das vísceras e, finalmente, da massa muscular já cozinhada pela exposição ao ar livre durante dois a três dias. As variantes são os melros, outras aves, cobras e lagartos. Nas fase de transição entre a aleitação e uma maior mobilidade dos gatinhos, o sítio fica um chavascal pejado de ossos, penas, pelos, escamas. Ratos e ratazanas já há muito que os deixei de ver. O que vejo, sim, é as gatas sempre de atalaia ao pé da fossa.

À medida que crescem, as crias vão diminuindo em número, geralmente de seis para duas, para cada gata. Não ficam vestígios no local, é para mim um mistério ainda por desvendar. As gatas não parecem muito incomodadas com o desaparecimento. Mas, no final de fase, tornam-se mães galinhas e andam sempre com o coração aos pulos em cima dos dois meninos jesuses restantes.

Das duas, a Laranjinha é a caçadora mais eficaz, assim como a Ratita se especializou na maternage. Enquanto a Laranjinha faz a sua sortida, a Ratita junta os quatro ou cinco sobreviventes no espaço entre o contentor e a sebe e fica por ali a espreitar, nunca se deixando adormecer. Se estou por ali, conversamos os dois, mas fico sempre do lado do anexo e ela do lado do contentor. De vez em quando aparece a Laranjinha com um coelho com o dobro do seu tamanho na boca. Sempre em corrida, surge vinda dos lados da horta, passa em corrida entre a irmã e a sebe e manda com o coelho contra o contentor, desaparecendo velozmente na direcção do terreno do meu vizinho Paulo. Não é dizer que a Ratita não seja boa caçadora. Estou só a afirmar que a Laranjinha é uma caçadora olímpica.

Quando dou comida de lata aos petizes, elas autorizam-me que eu passe as tigelas pela sebe e dispõe-se uma de cada lado a proteger cada entrada do túnel formado com o contentor. Têm uma organização tipicamente militar que, muito inteligentemente, dá prioridade à segurança e à diminuição do risco. E enquanto aquele pessoal não cresce a confiança dada aos amigos bípedes é parcial e condicional.

Quando estão todos à mesa do banquete que lhes proporciono uma vez por dia (para não se desabituarem de caçar), o pessoal, maior e menor, anda por ali à vontade e eu misturado no meio deles, às vezes com vontade de dar uma trinca nos pedaços de coelho com bom aspecto misturados com ervilhas e cenouras estufadas cortadas aos pedacinhos. A Laranjinha não se mistura. Fica por perto com um olho em mim, outro nas tigelas e nos comensais. Inesperadamente, lança-se em jacto sobre uma das tigelas que tem uma folga para mais uma cabeça, arranca três ou quatro pedaços de carne e vai comer para longe. Só sabe caçar e roubar.

[A fotografia é uma das raras em que aparece a Laranjinha. Quando lhe aponto a máquina e disparo, só fica registado o rabo. Nesta, tirada em 30 de Outubro do ano passado, ainda era jovem. É a que está a comer: vê-se bem a manchinha laranja entre as orelhas]

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

O que os bichos não dizem

E dir-me-ão vocês: " O que tem a ver a bota com a perdigota?". É que o que eles não dizem não é para se repetir. Limito-me, portanto, a deixar aqui algumas fotografias tiradas recentemente.

Em primeiro lugar, do Black, o gato afro-europeu (ou preto, em linguagem impoliticamente correcta), apodado de pescador pela Licínia, outros chamar-lhe-iam ladrão inocente, cara-de-anjo, etc.




Esta é do Fofinho. Acho que está tudo dito. Chamo a atenção para a narigueta arruivada, particularidade ímpar.











Estes são os meus seguidores...









... seguem-me para onde quer que eu vá. E o dia despediu-se:


segunda-feira, 27 de outubro de 2008

A astúcia do Black

O Black é um gatarrão negro, possante e encorpado. Ao contrário dos restantes confrades da sua espécie é um gato basicamente confiante na espécie humana. Vem quando se chama e aproxima-se deixando fazer festinhas. Num gato selvagem isto dava para dois ou três meses de trabalheira até o conseguir. Com ele, não. Foi à primeira vez.

Vem calmamente à hora das refeições, senta-se por perto mas não toca na comida. Fica a ver os outros a comerem e só no fim se aproxima, cheira e faz ares de repúdio deixando a entender que comida de lata é coisa um bocado amaricada, comida de cães.

Há dias fui encontrá-lo a comer uma coisa amarela. Era lusco-fusco e não dava para ver bem o que era. Mas era bem amarelo, amarelo-alaranjado e de certo modo volumoso. Se era víscera de animal este seria grande, de certeza. Seria uma cobra esfolada? Aproximei-me do Black para observar a sua presa. O Black arredou-se um pouco para ma deixar apreciar. Não fiz questão de ver bem o que era, pois metia-me algum nojo. Mas não deixei de considerar: "que grande caçador!"

Andava eu a podar as roseiras com a pouca luz do dia que restava e a pálida luz eléctrica que já se acendera e, a certa altura, vi o Black a aproximar-se de mim. Deu-me marradinhas nas pernas, roçou-se sofregamente e ronronou felicíssimo. Disse cá para mim: "ainda por cima é simpático!"

Bem, estava na hora. Arrumei as alfaias no "escritório" e entrei dentro de casa directamente para a cozinha para preparar o jantar. Pus o grelhador ao lume e fui buscar o salmão que estava no tempero soberbo das ervinhas que colhera no jardim.

Descobri nesse dia uma excelente maneira de preparar atum em conserva de lata.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Como despachei o Zinga

Sou um mau falante de Tamasheq: o raro que conheço é só para me dar ares.

Não abdico, por isso, do meu tradutor de francês para conversar com os membros do povo do véu e junto sempre, como condimento à conversa, à noite à lareira, uns tragos de chá,e apenas uns tragos que demasiado seria recebido como rudeza e má criação. Para além de que, como sanciona a vasta sabedoria tuaregue, a água pode tornar um homem em escravo.

Foi difícil vender o Zinga à dona do palmeiral. Para que servia o burro? Se fosse uma cabra ou uma camela leiteira, ainda vai como vai. Agora, um burro?

Há uma expressão nigeriana que é o "ser tão teimoso como um tuaregue". Apreendi uma vez a conotação ligeiramente jocosa e brejeira do termo equivalente ao nosso "teimoso", que faz rir as mulheres em conlúio, e decidi usar essa descoberta, logo que pudesse, em proveito pessoal.

Estava ela a querer saber que nome eu pusera ao burro e o que queria dizer Zinga. Disse-lhe que era uma deturpação do termo "rezingão", equivalente bem humorado de "teimoso". Desataram-se todas a rir, o ambiente espaireceu e o Zinga mudou de dono sem me piscar um olho ou abanar a cauda em jeito de adeus.

Não lhes contei a razão verdadeira : pus-lhe o nome ao calhas quando estava a ler um artigo sobre o eventual envolvimento de Ratzinger na juventude hitleriana.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

O Zinga e eu

Ao contrário dos gatos, que não falam mas conversam, os burros não conversam nem falam: limitam-se a olhar e é na profundidade do seu olhar que um homem vê se as suas ideias são aprovadas ou desaprovadas. É vão todo o demais esforço para comunicar ideias: um burro tem uma compreensão aberta mas é incapaz de entender uma explicação para as coisas.

Assim é o Zinga. No dia da minha grande zanga, depois de ter mamado do alguidar de latão todo o leite de camela, que constituía parte proeminente das nossas provisões para a semana, esticou o pescoço até mo assentar no ombro e dava pancadinhas com as orelhas de abano na minha face. A vontade de airar evaporou-se num ápice na torridez do deserto. Sumiu, deixando o gesto secar-se no corpo como a lama das construções dos beduínos. O Zinga focou em mim os olhos globosos, chorosos de tanta ternura. E que havia eu de fazer?

Um burro põe-nos sempre perante problemas práticos. A questão doravante era como fazer e não que fazer. Arranjar mais leite, numa época em que nem os espinhos das acácias se tinham ainda recomposto para servir de alimento às manadas? Estava fora de questão adquirir mais leite aos tuaregues. Da minha parte, iria intervalar o chá de menta com o café à turca temperado com a vagem do cardamomo. Ele que se desunhasse; a ração tinha-a já no buxo, que fizesse como os camelos: não a desperdiçasse. Dito e feito, parecia ler os pensamentos: as quatro patas abertas e bem fixadas no chão, do falo entumecido jorrou em jacto uma urina espessa, quente e espumosa que se dissipou de imediato no chão alaranjado.

Para lhe mostrar quem mandava desenrolei a extensa faixa da tagelmoust. Esperava que o meu rosto expressasse toda a raiva acumulado em sucessivos episódios de cabeça perdida. Pelo contrário, riu-se descaradamente das minhas feições purpúreas provocadas pela tinta que se depositara na cara ao longo do dia. Cedi, rindo também. Não ia desperdiçar a minha reserva de harissa para me mascarar de vermelho. Afinal de contas, é preferivel comer uma chorba bem apaladada do que mostrar a cólera a um burro.

Voltei a enrolar a tagelmoust que me deixou de fora apenas os olhos. Daí a pouco iam levantar-se os ghibli que, como um turíbulo oscilante, espalhariam por todo o lado a poeira do deserto.

Afinal sempre ficavam os olhos que se iriam gladiar como um jogo de espelhos.

(Texto enviado hoje para publicação por Perdido)


quinta-feira, 17 de abril de 2008

Livro de visitas

Perdido tem um jeito especial para entender e falar com a bicharada. O que demonstrou em dois anos de publicações no blogue "O Tremontelo". Esses postais foram recolhidos neste lugar.

Incito o visitante a percorrer os quadros desta exposição ouvindo Mussorgsky. E a deixar as suas impressões neste livro de visitas

A Bicharada

Os lugares estão pejados de pessoas: gatos, humanos, jumentos e outros. As pessoas (lat.: personnae) ressoam (lat.: personnant), ampliam os sons que lhes saem do cérebro através das suas máscaras (lat.: personnae) e variam para aqui e para ali quando estão juntos (lat.: cumversant, conversam). As pessoas são seres que erram solidariamente, e perdem-se aonde a conversa os leva. As pessoas humanas são supremos perdidos através da fala. Por isso escrevem blogues.

Transcrições de textos antigos (Fevereiro de 2006 a Novembro de 2007)


Ahi quanto a dir qual era e cosa dura...” (14 de Fevereiro de 2006)


A bicharada apareceu, grandes e pequenos, peludos ou de carapaça quitinosa. Primeiro, o An Jie, elegante, inteligente e bonacheirão. Depois, a indescritível Julieta, siamesa de pelo ébano à mistura com um cenoura amarelento, certamente do presumível pai, o gatarrão anafado do vizinho Paulo. No ano passado, o An Jie desapareceu, a Julieta voltou grávida, deu à luz quatro rebentos, dois cinzentos e dois cremes. Sobreviveram dois: o Tigre, de pelo cinzento riscado, pequenino, afoito, amigável; o Areias, creme, grandalhão, reservado e afastadiço.E bicharada de todo o tipo, aqueles seres minúsculos cujo destino é perecerem sob o peso marcial da botifarra urbana. A passarada, a bebericar a água do lago. Os bandos de perdizes, às dúzias, a fazerem-se à pista como loucas até largarem em voo sossegado em direcção a outras paragens. Um dia descobri um ninho das ditas, uma obra de paciência e bom gosto, uma boa dúzia de ovos dispostos em dois círculos concêntricos, rigorosamente ordenados.

[Comentários]



A companheira (22 de Fevereiro de 2006)

Seriam já umas onze horas quando começou a dar sinais da sua existência. Ao dar-me conta de que ele andava aí pelas redondezas, chamei: “An Jiiiiie?”. Ao que ele deu resposta imediata gemendo, como era seu costume, um miado muito seu que fazia lembrar um arrastado e melancólico lamento. Só para me certificar, ou talvez porque o jogo da repetição se transformara em hábito, repeti várias vezes o chamamento, só que cada vez num tom mais elevado e com um modo mais categórico: “An Jie!”. Cada vez mais aproximado, proferiu o mesmo lamento, também um tom acima do inicial e mais arrastado.Ao pé um do outro, repetimos ainda por três vezes o mesmo diálogo, enquanto ele por três vezes se entrelaçava nas minhas pernas. “Tens fome, AnJie?”. Que sim, que tinha, pois pronto se ôs resolutamente a correr à minha frente de rabo alçado em direcção ao terraço do Anexo.
Procedi à rotina do costume enquanto ele andava para ali a dar marradinhas nas minhas pernas. Limpei criteriosamente o comedouro, uma tigela amarela de plástico comprada no Intermarché do Cartaxo, abri a latinha fazendo o estalido característico ao arrancar a tampa de alumínio, a que ele respondeu automaticamente com um miado seco, e verti o conteúdo no comedouro de plástico. Arrumei o lixo e lá o deixei a bater-se, creio que com um souflé de atum e fui aos meus afazeres para a horta.
Andava a mondar, creio, um exercício repleto de flexões sobre os joelhos acompanhado da contracção dos abdominais, cujo objectivo é retirar as ervas, que do ponto de vista de um jardineiro são daninhas, pois têm um efeito nulo no canteiro e consomem as reservas nutritivas e a humidade do solo tão necessários, como escassos, para a preservação das espécies ornamentais ou comestíveis. Estaria então a mondar, pois é isso que a memória me dita embora não seja certo que essa memória corresponda aos acontecimentos desse dia ou aos de um dia próximo, quando o sinto a aproximar-se e ... espantem-se, pois também eu confesso que me espantei, lá ouvi outra vez aquele miado que parecia um lamento, mas agora mais pungente, mais confrangedor, uma directa e acutilante punhalada no sentimento humano.
Estaria ele ainda com fome? O raio do bicho comera uma lata inteira de atum, maior que a barriga dele, e vinha agora implorar mais comida? Ná! Havia engano e seria eu que estava a interpretar mal o bichano. Então que quereria ele? Disfarcei, fiz-me desentendido e continuei na monda, flecte barriguinha, flecte barrigão,gatos destes não me fazem ninhos atrás das orelhas! Mas o miado lá continuava, insistente, obsessivo, desesperado. Uhm! Só pode ser fome, é comida que ele está a pedir. “Papinhas, An Jie?”.
Acto contínuo, volta o dorso e, de rabo alçado, dispara em direcção ao anexo. Não havia dúvidas, era fome. Fui buscar outra lata, ritual de limpar o comedouro, servir, colocar o recipiente no sobrado do alpendre. O An Jie parecia doido, nervoso miudinho, a dar voltas sem eira nem beira. Parecia desorientado, à espera de alguma coisa, ou atento, como quando se aproxima da rede o cão do vizinho Paulo. Se calhar enganara-me, não tinha fome, o que iria fazer da lata aberta? Era bom para aprender a ter juízo e desta feita não me convencer de que tinha o condão de perceber a linguagem dos gatos.
De repente, desapareceu-me da vista correndo em direcção a nascente. Que comportamento estranho!
Perplexo, ficara no mesmo lugar com a lata aberta na mão a olhar para nenhures. Não sei se pensava: era daquelas raras situações em que a consciência se nos fica suspensa, como um relógio de ponteiros temporariamente sem pilhas e que volta a trabalhar com umas pancadinhas ligeiras. Ali estava eu, sem jeito, com uma lata aberta na mão, que tanto poderia ser de atum, como de vaca ou frango, assunto que era para mim irrelevante e que, para o gato, parecia ser completamente indiferente.
Nestes momentos, em que a duração do tempo é consumida de uma forma perfeitamente inútil, é que nos apercebemos de um modo trivial que existimos. E que “existir” é apenas isso: estar para ali, sem sentido, sem finalidade, sem utilidade. Será que os gatos se apercebem de que existem? Da minha observação tenho concluído pelo contrário: existem e, como tal, estão-se nas tintas para pensar nisso. Diria pela forma como pensam que são filósofos cínicos. Mas isso indignaria profundamente um gato: um cínico, como a palavra grega diz, é aquele que se comporta como um cão. Ora um gato jamais faria isso! Teríamos que inventar uma palavra nova para designar a escola de pensamento felino. Consultando o dicionário de Português-Grego concluo que gato se diz qualquer coisa como “ailuros”. Em vez de cínica, teríamos então a escola ailúrica cujo lema bem poderia ser “primum vivere, deinde philosophare”. Mas sendo isto contas de outro rosário, voltemos ao ponto em que estava de lata na mão, existindo, de consciência semi-suspensa e envergando provavelmente o ar mais idiota que jamais consegui noutras alturas.
A certa altura pareceu-me que o bicho regressava, mas vinha negro, negro como um tição, atarracado e menos ágil do que era costume. Um pouco tímido talvez. O que era deveras uma situação demasiado confusa, dado o estado de letargia a que me tinha deixado chegar.
A torpor desapareceu de vez, como nas cenas em que uma pessoa sai de um estado de hipnose com um estalido de dedos do hipnotizador. De repente, de peito branco todo emproado, com marcha compassada e ar decidido e garboso, aparece atrás o An Jie, todo ele orgulho estampado no focinho giro. Afinal, aquele ser preto, meio dengoso, meio medroso, que vinha à frente, não era o An Jie.
Afastei-me para não assustar o estranho e dar lugar à cena que se iria passar.
O An Jie apressou-se a passar à frente do gato preto e veio para ao pé de mim, ronronando e enrolando-se-me nas pernas. Eu estava apenas calado e imóvel. Voltou atrás e em paralelo com o gato preto colou-se a ele, ronronando e dando cabeçadinhas na cabeça dele. E assim progrediram os dois colados até se abeirarem da tigela amarela onde o gato preto se pôs a comer avidamente e o An Jie, sem desgrudar, cabeceava ternamente na cabeça do outro ... da outra, como não tardei a aperceber-me com este jeito que tenho de olhar logo para onde algumas pessoas me dizem que não devo.. cabeceava e olhava para mim com os olhos de um apaixonado. Assim ficaram os dois algum tempo, ela a bater-se com o atum (ou seria vaca, ou frango?), e ele, ora às marraditas, ora a olhar para mim todo vaidoso. Acabado o repasto da dama, trouxe-ma o An Jie ao pé de mim (espantosa a confiança com que ela o seguiu para abordar um estranho!) e olhando-me directamente nos olhos, coisa que um gato em situação normal jamais fará, disse-me:
É a minha namorada”.Não sei se sei porquê, baptizei-a com o nome de Julieta.

[Comentários]



Conversas com gatos -1 (29 de Junho de 2006)

– Anda a cair-te o pelo, humano?
– Cala-te, ó piolhoso, que tens a ver com isso? Não estejas preocupado que não é nenhuma pelada; nenhum humano me ferrou a dentuça, se é nisso que estás a pensar.
– Ummh! Pensei que estivesses doente: anda-te a encolher essa coisa a que chamas roupa, cai-te o pelo, falas sozinho… e andas a dar-me menos comida.
– É do Verão, ó meu obtuso. Se te pusesse mais comida, não a comerias toda. Seria atacada pelas formigas, e lá ficava a estragar-se!
– E não tens mais latas lá em casa? E estás sempre a trazê-las do carro. Porque é que te armas em sovina?
– E és tu que vais trabalhar para ganhar o dinheiro? Pensas que as latas caem das árvores?
– Deus dos ratos! Ainda bem que não. Olha se em vez das bolotas me acertasse uma lata na cabeça? Bom, já te disse que dinheiro e trabalho são coisas que não me entram na cabeça. São conceitos adequados para os humanos e os cães e não quero adiantar mais conversa que isso do trabalho põe-me o pelo todo de pé! E a propósito: o teu pelo, cai-te porque é Verão?
– Esse é outro conceito que também não vai entrar nessa cabeçorra oca, mas vou tentar. A barba não me cai, nem o cabelo: sou eu que a tiro quando chega o Verão. Com um objecto parecido com a faca de mato rapo a barba nesse dia e nos dias seguintes. O cabelo é mais difícil. Tenho que pedir a uma pessoa, que se chama um barbeiro, que mo corte; e depois vai crescendo aos poucochinhos.
– Enganas-te, percebi como é que o fazes. Mas não me explicaste é porquê.
– Ora ai está, é nesse aspecto que não vais perceber tudo. Dá-me atenção: Por um lado, a pele está mais exposta ao sol, o que é saudável: respira melhor e ajuda a fabricar a vitamina D; ando mais leve e não tenho tanto calor. Por outro lado, é um ritual que obedece a um ciclo anual: acontece todos os anos no solstício do Verão…
– E voltas a deixar crescê-la no equinócio do Outono… Já percebi. Mas porque chamas a isso um ritual, não é apenas uma data útil que convencionaste para te ajudar a tratar da tua higiene? Explica-me, e não te faças rogado, que isso de rituais percebo eu!
– Presunçoso! Tu não és um ritualista, és um gato neurótico, obsessivo e supersticioso, que anda sempre a esconder patas de coelho nos ramos das árvores.
– Escusas de tentar ofender-me que sou completamente indiferente aos teus remoques. Só estás a ganhar tempo para arranjares uma explicação atabalhoada para essa do ritual.
– Então espeta bem esses ninhos de pulgas que tens na cabeça e dá-me atenção: Há uns milénios a esta parte os humanos temiam, amavam e estudavam a natureza procurando compreender a vida e a morte, o dia e a noite, a felicidade e o infortúnio. De observação em observação, com o acumular da experiência, concluíram que o tempo tem um movimento circular e que os eventos sucedem-se ciclicamente numa ordem pré-determinada. E que o mesmo sucede tanto na ordem natural, como na ordem sobrenatural, isto porque os deuses também renascem, amadurecem e morrem.
– Não vejo ainda qualquer ligação com os teus pelos... ou será que também renascem, amadurecem e morrem?
– Quente, muito quente! Estás com os bigodes mesmo em cima da coisa. O Sol, que é a figuração do Filho da Senhora, nasce no solstício do Inverno, o equinócio da Primavera é o meio termo do crescimento como o do Outono o é da decrepitude. O solstício do Verão representa a sua maturidade; o do Inverno, a morte e o renascimento. É por isso que os solstícios são celebrados com as fogueiras.
– Com as fogueiras? Passaste-te ou quê?
– As fogueiras têm a ver com o sol. As árvores fixam a energia solar através da fotossíntese. Numa fogueira, a lenha, a madeira que é tirada das árvores, arde, repetindo a actividade solar. Os humanos então reúnem-se em círculo e saltam sobre as fogueiras para reavivar o fogo solar.
– Vocês conseguem complicar tudo. Nós preferimos o calorzinho para dormir.
– É! Cada um é como é! Os humanos desenvolveram um cérebro que se comporta assim: descobre facetas da realidade e converte-as em ideias para memorizar o conhecimento assim adquirido; depois, descobre pontos de contacto entre as ideias e encadeia-as umas nas outras como as tiras da BD. Foi assim que apareceram os mitos e as teorias.
– Nós fazemos algo de muito parecido, mas baseado nos cheiros ...
– Pois... Então, como te estava a explicar, as fogueiras são festas do ciclo solar muito antigas. Dessas festividades, só restam hoje o pinheiro do Natal e as fogueiras do S. João com as queimas das alcachofras.
– Mas essas não são festas cristãs?
– Sim. Como os monoteístas não conseguiram erradicar do povo a afeição pelos cultos pagãos, converteram-nas em festas suas. Eficaz e barato, não te parece?
– Vocês e o monoteísmo, e o monarquismo, e os monopólios... Quando é que crescem, ganham a vossa independência e aprendem a viver em comum como animais civilizados?
– Adiante! A essência da festa é a representação: através do culto representamos aquilo que queremos celebrar. Representar significa tornar presente o que está ausente, substituir o representado pelo seu símbolo.
– Isso faz todo o sentido, também usamos expedientes desse tipo ... E onde é que aparecem os teus pelos?
­­– Ok! Represento o ciclo solar com o aparecimento e desaparecimento da barba. Luz e sombra. Agasalho e frescura. Velhice e juventude.
– Safaste-te bem com essa explicação. E já agora explica-te porque é que a tua roupa encolhe no Verão?
– Por razões práticas: uso calções no Verão para ficar com as pernas à fresca, no Inverno uso calças, que são mais compridas, para me aquecer.
– Não gosto nada disso. Com os teus calções obrigas-me a encolher as unhas quando me penduro nas tuas pernas para me coçares a cabeça.

[Comentários]



Conversas com gatos -2 (30 de Junho de 2006)

– Então, andaste aí distraído durante uns tempos com o teu blog, não é? E agora usas-me para tapar o buraco. Saíste-me cá um safardana!
– Bem!... Quer dizer…
­– Não queres dizer nada. Queres é ganhar tempo até veres como é que te vais safar. Tens tanta vergonha nessa cara rapada que até pareces um gato.
– Se isso é um elogio, aceito-o. Vejam bem as coisas que eu aprendo com este gato sem moral!
­– Então não me dizes, está bem. Cá para mim, andaste um mês com o cio a percorrer os telhados da tua cidade à caça de humanas.
– Já te disse para não te meteres nesses assuntos, ó abelhudo!Além disso, dá para ver que não percebes nada de humanos. As coisas não funcionam assim.
– Tá bem, tá bem. Já te ouvi esse discurso dos sentimentos, da sedução, do namoro, da fidelidade, do controlo social, da família monogâmica, da sublimação das emoções. Vocês são todos muito bons a articular palavras e a esconder ideias. Mas, como sabes, isso passa-me ao lado, é música para os meus ouvidos. A verdade que vem de ti, e que eu percebo, vem-me toda pelo cheiro. E o teu agora revela-me que tens a cabeça cheia de ideias bem sujas. Ah-ah-ah!
– Cala-te e vai-te catar senão … corto-te na ração.
– Grande fair play!
– Mudemos de conversa. Queres saber o que andei a fazer durante este mês? Comecei por estar fora. Em Paris. Paris de França.
– Que novidade! Estiveste lá só uma semana.
– Está bem. Mas, enquanto lá estive não tinha computador nem Net para poder “postar” as minhas peças para o blog. Recolhi muita informação, tirei muitas fotografias… Quando voltei, tive muito trabalho para organizar isso tudo. E, depois, havia o trabalho que ficou à espera que eu chegasse. As férias são sempre assim: chegamos descansados, mas depois de começarmos a trabalhar ficamos logo a precisar de tirar férias outra vez.

– Isso para mim não dava.
– Ah, pois não.

– E Paris, afinal como é que é?

– Bom, tem gatos como todas as cidades. Só que são mais bem-educados e mais galantes do que os que conheço por cá. Os do campo são uns grandes caçadores e não perdem tempo na tagarelice.

– Já te disse que as tuas provocações não me demovem da minha indiferença. Diz-me coisas com interesse de Paris.

– Ok, vou contar-te montes de coisas mas, primeiro, deixa-me escrevê-las e editá-las no blog. Vais ter que ter um bocado de paciência.
– Paciência é o que não me falta. E com menos conversa já me tinhas aberto uma latinha de ração. Podia ser de atum; ou… aquela de carne de galinha… que não estava nada mal, não senhora.

[Comentários]



Conversas com gatos -3 (15 de Julho de 2006)

- Que cara é essa, homem?
- Como? ... Que disseste?
- Nunca te vi desse modo, acredita, parece que viste coisa má.
- Não se passa nada, é apenas uma indisposição passageira.
- Conheço-te melhor do que julgas e o teu cheiro a pelo da cabra esbaforida não me engana.Estás com uma destas neuras! Alguém te fez alguma?
- Porque haveria de ser assim? Deixa-me em paz, peludo.
- Vês?! Afinal estou cheio de razão. Vocês, homens, ou não conseguem brincar, e isso já é muito mau. Ou começam a brincar uns com os outros, aleijam-se e, depois, chateiam-se, que é, diga-se em abono da verdade, como as coisas devem ser. Mas, depois de se chatearem, andam assim uns tempos como se não conseguíssem esquecer o assunto. É assim tão importante para vocês a memória?
- ...
- Estás a pensar? Vês: tens que rebobinar uma data de coisas como se não soubesses que resposta hás-de dar! A vossa memória só serve para complicar. Tens a resposta na ponta da língua, como vocês dizem, mas antes tens que a comparar com todas as respostas possíveis alternativas como se estivesses a jogar xadrez. Nem vês a cara de parvo que fazes quando estás a ruminar!
- Livra-te de me voltares a ofender, ó ... ó...
- Se tivesse a tua memória, ajudava-te a encontrar uma data de mimos para me chamares...
- Cala-te, ó bigodes de piassá.
- Essa é boa: andas a vasculhar no cesto dos papéis da tua memória. Não consegues manter a tua conversa dentro dos limites aceitáveis da comunicação e do bom gosto?
- Bom! Estás mesmo interessado em perceber o que se passa com a memória humana? Sim? Ok! Quando ouves um som inesperado, ou vês um rato isso recorda-te alguma coisa, não?
- Claro! Quando vejo um rato, lembro-me que tenho que pôr-me a jeito de lhe pular para cima.
- Como eu pensava. As imagens aparecem-te e fazem-te recordar o que deves fazer.
- Vez nisso algo de errado? Os cães, que são tão parecidos convosco, também reagem assim.
- Todos os animais são assim; só o homem é que age de uma maneira diferente. Para vocês, quando se forma no cérebro uma percepção, isso significa que uma determinada combinação de estímulos do mundo físico despertou uma imagem guardada em memória. Reflexamente, desperta também uma acção que lhe está associada, por associação condicional ou operante. A diferença da memória humana, é que o homem procura activamente formar essa imagem por uma espécie de esforço originado internamente. O resultado é muitas vezes bizarro: quando procuro lembrar-me de ti, na tua ausência, consigo ver-te com uma cabeça de burro em cima desse pescoço arrogante.
- Continua, que vais bem.
- Umas vezes, vemos cavalos com asas e chamamo-lhes pégasos. Outras vezes, vemos cavalos com um chifre, e chamamo-lhes unicórnios. O mais interessante é que a maior parte das vezes não precisamos de nos esforçar para ver alguma coisa: basta evocar as palavras!
- É por isso que passas o tempo a falar das coisas que gostarias de fazer. Assim, já não tens que as fazer, não é?
- Cala-te e ouve. A memória são as palavras. E para nos lembrarmos, estamos quase sempre a falar para dentro de nós mesmos.
- E é assim tanta a necessidade de se lembrarem?
- Não sei. Se há alguma necessidade, ninguém se lembra dela. As palavras comandam sozinhas a memória.

[Comentários]


Os gatos (25 de Agosto de 2006)

A Julieta presenteou-me este mês com cinco gatinhos, quatro de cor cinza, como o Tigre, e um amarelado como o Areias. Entretanto, já anda outra vez prenha.
O gato branco do vizinho, que suponho ser o pai, anda ali com eles: deixa uns à minha protecção, por baixo do contentor, e leva outros para caçadas. Quem não está a gostar nada da coisa é o Tigre que vê, assim, o seu território devassado. À noite, ouvem-se grandes zaragatas, gritos de arrepiar. É lá com eles: mais arranhadela, menos arranhadela, faz parte do currículo de qualquer gato.
Continuo a ter grandes conversas com o Tigre, mas pouco tempo para as escrever. O tempo de férias é pouco propenso a escritas.
O Areias anda geralmente desaparecido. Aparece de vez em quando, mas não dá contas da sua vida. É lá com ele.
Ele há coisas que o melhor é a gente ignorar!

[Comentários]


A resistente (22 de Novembro de 2006)

Num destes fins de semana passados tive uma carga de trabalhos com os gatos. Vim estafado de Vale de Moinhos e valeu-me o feriado de quinta feira (o 5 de Outubro) para, enfim, descansar.
Cheguei sexta-feira à noite, como é hábito, e pus-me a executar aquele tipo de trabalhos que se fazem à noite, nos fins de semana, quando não apetece ver televisão porque não passa filme ou programa que prenda a atenção, nem dá para ler por estar demasiado cansado, e posso pôr quadros na parede, pendurar candeeiros, furar com o black-and-decker, arrastar móveis e pôr música aos berros por não haver alminhas, além de mim, num raio de trezentos metros. Actividades que podem incluir preparações culinárias, máquinas de roupa e estendal no mezaninho, passagem a ferro e arrumações.
Nessa noite, ao contrário do que é meu costume, não fui abrir as portas do anexo e do contentor, e fiquei em casa deitando-me tarde.
Devido ao efeito dominó, acordei tarde. Não tinha gatos a miar, passe a contradição, serenatas matutinas à porta do meu quarto, não tinha familiares a impor-me deveres de sociabilidade, não tinha compromissos profissionais, não esperava fornecedores nem prestadores de serviços, não havia rotinas domésticas ou de exterior que me compelissem a sair cedo da cama. Em suma, fiquei na cama a preguiçar, consciente e assumidamente, que é como a preguiça sabe bem.
Levantei-me e executei o processo bem estabelecido das rotinas matinais que, além de comporem o aspecto mais ou menos amarrotado com que se sai da cama, de tirarem a barriga de misérias e de tirar as misérias da barriga, têm por mais nobre objectivo o de consumir os sobejos de sono que nos acompanham na primeira hora de vida vigil.
Dado por bem sucedido o referido processo, e já vestido a rigor para os afazeres de exterior, saí apanhando deliciado com o ar confortável de manhã já bem avançada num fim de verão. Não compareceram à formatura gatos para acariciar ou para dar de comer. Fui abrir a porta do anexo, entrei para abrir as janelas e fazer o inventário mental do que ia precisar para aquela jorna.
Saí passado pouco tempo e fui abrir o pesado portão do contentor. Ao proceder a essa operação, em que é necessário escolher duas chaves elevantes e colocar as ranhuras na posição correcta antes de as introduzir nos respectivos cadeados, ouvi um miado. Mas um miado que vinha de dentro do contentor.
Mau! pensei. Nenhum gato sobrevive uma semana dentro de um contentor sem comida e sem água.
Abri atabalhoadamente aquela geringonça e vejo à minha frente o vulto negro e ridiculamente pequeno da Julieta que, uma vez safa daquela enrascada, usava as últimas forças para miar com maior estrepidez. Se ela já era magra, mais magra estava; se ela já era pequenitotes, reduzida estava à mínima dimensão que um felino pode suportar.
Muitos abraços, muitos carinhos, muitos miados, muitos roçanços, muitos ronrons, até dizer basta e lá vai ela para o lugar ritual da refeição de toda a tribo. Fui ao anexo buscar a lata, apanhada à pressa sem controlo de qualquer critério de dieta, e lá lha servi todinha para o recipiente da manja.
A desgraçada, esgalgada, morfou num ápice, seria carne, seria peixe? Seria paté ou uma jardineira de ervilhas e cenouras de que eles tanto gostam? Não o soube. Ela também não.
Comeu indo direito ao fundo da questão, que é como quem diz, ao fundo do prato. E sem procurar primeiro lamber-se, respirar fundo ou agradecer, desata num pranto a pedir mais. Ao que lhe disse, Julieta tem juízo, estás com o estômago fraquinho, ah... e tal! E não lhe dei mais, preferindo ouvi-la até se cansar.
Estava eu nesta, satisfeito já por ter feito um salvamento e praticado uma boa acção, quando oiço uma chuvada de miados a vergastar-me os ouvidos vinda do contentor. A Julieta, antecipando-se, pôs-se num ai no contentor e, quando lá chego, vejo-a rodeada de cinco marmanjos pequenitos, com as orelhas maiores do que a cabeça, e a cabeça maior que o corpo, a quem labia tranquilamente. Um ainda lhe farejou as tetas servindo-se aos sacões mas logo as deixou amandando-se em voo circular, e com as unhas afiadas, para cima de um dos gémeos.
A desgraçada tinha estado uma semana a alimentar aquelas esponjas peludas!
A história desse dia não acaba aqui, mas deixo o resto para outra altura porque eu, eu próprio, não consigo deixar passar uma refeição em branco.

[Comentários]



Conversas com gatos (o regresso) -1 (22 de Janeiro de 2007)

- Ouve lá, ó humano, que história é essa de andares a pôr lampadinhas nas árvores? Não te chegam as que tens penduradas na parede à volta da casa?
- Então ... é Natal!
- Natal! Cá para mim, isso é só um nome.
- E depois?
- Ah! Tem a ver com a vossa de mania de responderem com palavras, com nomes, quando se vos pergunta alguma coisa.
- Bem, Natal não é uma palavra qualquer. Vê só: quer dizer dia do nascimento; refere-se à comemoração de um nascimento.
- Então, a tua fêmea pariu uma ninhada de crias... E não dizias nada?
- Não é nada disso, animal desmiolado, já não tenho idade para me meter nessas aventuras. O dia de Natal celebra-se todos os anos em muitos países, por volta do solstício do Inverno, e celebra o nascimento de alguém há uns milhares de anos atrás.
- Deve ter sido pessoa importante para continuarem a lembrar-se. Era da tua família?
- Não. Na verdade, nem se sabe se foi uma, se foram muitas pessoas ou, porventura, ninguém quem teria nascido nesse dia.
- Como assim?
- Depende da história a que nos referimos.
- História?
- Sim, do mito.
- Está a tornar-se interessante. Vocês, humanos, têm uma predilecção obsessiva pelas mitos dos heróis e dos deuses. Conta lá, acho que vou gostar.
- Eim?
- Se faz favor.
- Ora, prepara-te para ouvir. Vou contar-te a história de Mithra, que era considerado pelos antigos persas o mediador entre o deus e os homens. É uma história muito antigo, já referida pelo historiador grego Heródoto cerca de quinhentos anos antes de Cristo.
- Deixa-me aconchegar. Estes montes que fazes para compostar a erva são muito quentinhos.
- Então, não adormeças.
- Prometo que não, continua a falar do tal Mithra.
- Foi há muito tempo, na Pérsia ....
- De onde vêm aqueles manos tão peludos que até parecem tapetes?
- Os gatos persas? Sim. Mas se me estás sempre a interromper não há história.
- Ok! O tal Mithra era persa... Também era peludo?
- Cala-te e ouve. Segundo a lenda, Mithra, a luz e o poder que estão por detrás do sol, era considerado filho de deus e teria nascido de uma virgem. Era cultuado pelos crentes mithraistas como o deus da luz, da guerra, da justiça, dos contratos e da amizade. O culto era feito nas Mithreias, umas cavernas construídas artificialmente para representar a gruta onde, segundo a lenda teria nascido, a 25 de Dezembro.
- Quer dizer que acendes as luzinhas porque o sol nasceu a 25 de Dezembro numa gruta, de uma mãe que era virgem? Se a tua intenção era confundir-me, acredita que conseguiste.
- O tecto da gruta fazia lembrar o céu estrelado. À volta estavam dispostos vários bancos onde se realizavam as refeições rituais. Num nicho, no centro, podia-se ver em relevo o deus, vestido à maneira frígia, a sacrificar um touro.
- Um touro?
- Um touro, sim. Mithra teve uma vida complicada. Esteve exposto a tantos perigos na infância que teve que fugir para a Pérsia. Foi perseguído por um rei que o queria liquidar. Teve doze discípulos (os doze satélites). Foi levado aos céus por um anjo e, no regresso, trouxe consigo o livro das leis. Foi perseguído e crucificado, e ressuscitou ao terceiro dia, expiou os pecados da humanidade. Após ter capturado e sacrificado o touro divino, regressou ao céu.
- Ah, o touro divino!
- Os sacerdotes de Mithra, os Magos, faziam crer aos seus seguidores que vários prodígios tinham precedido e anunciado a vinda de Mithra. E que realizou vários milagres para confirmar a sua missão divina e demonstrar a verdade contida no seu livro.
- O único prodígio quando a Julieta está pranha é o tamanho da barriga.
- O culto rapidamente se expandiu pelas regiões vizinhas da Babilónia, da Caldeia e da Ásia Menor. Sendo uma religião só permitida a homens, tornou-se muito popular no exército, entre os soldados romanos. Por volta de 100 A.C. era venerado em Roma como "Deus sol invictus". As mitreias espalharam-se por todo o império romano. Ainda hoje, existem 50 dessas grutas em Roma.
- Uau! Imagino a quantidade de ratos...
- Teve tanta importância em Roma que Cómodo, um dos imperadores, iniciou-se no seu culto. Em 312 depois de Cristo, outro imperador, Constantino o Grande, converteu-se ao cristianismo, uma seita desviante do judaísmo ortodoxo, e o mitraísmo entrou em declínio perseguído e atacado ferozmente pelos cristãos.
- Mas mesmo assim vocês continuam a celebrar o aniversário do nascimento desse Mithra.
- Sim e não.
- Não percebo.
- Mas hás-de perceber.

[Comentários]



Conversas com gatos (o regresso) -2 (23 de Janeiro de 2007)


- Parece-me que me contaste a tua história de uma maneira completamente baralhada. Tenho uma amiga, uma boneca que apareceu agora vinda de Lisboa, já te falei nela? Bom, anda a pôr a cabeça de toda a gente à roda.
- Então, é a tua cabeça que está baralhada ou é a minha?
- Continuando. É daquelas felinas que andam sempre coladas aos humanos, com o pelo sempre escovado e a cheirar a essências florais. Acho que irias gostar de conhecer a humana dela. É... é...
- Imagino: uma boazona!
- Se calhar é isso. Para a tua espécie parece um bom pedaço de fêmea. As duas andam sempre muito agarradinhas uma à outra, a contarem segredinhos e a comentar a respeito de tudo. Parece-me que a humana já lhe contou essa história do Natal e não da maneira como tu me contaste.
- Quê! Falou-lhe do nascimento do menino Jesus?
- É isso, é isso mesmo! Já conheceste a fêmea humana? Falaste com ela?
- Não, por que havia de ter falado?
- Como sabes desse... desse Jesus, não é?
- Ora, qualquer cria humana já ouviu falar do menino Jesus e do Pai Natal.
- Esse é o pai do menino Jesus?
- Não. E não tem nada a ver. São duas histórias completamente diferentes que têm apenas um ponto em comum. Tanto um como o outro oferecem prendas aos meninos e às meninas no dia de Natal. Mas esquece o Pai Natal. Podemos falar nele noutra altura.
-Está bem! Fala no teu menino.
- Ora, prepara-te para ouvir. Vou contar-te a história de Jesus, que foi considerado por um grupo de judeus heterodoxos, e depois por todo o mundo romano, como o Messias, o mediador entre o deus e os homens. É uma história com dois mil anos, e está descrita em cerca de uma dezena de livros chamados os Evangelhos. Tudo começa quando o espírito de deus apareceu na forma de uma pomba a Maria, uma judia da cidade de Nazaré que era virgem, e lhe anunciou que ia ser mãe do salvador da humanidade. Quando chegou a altura do parto, Maria e o seu esposo José encontravam-se de viagem para Jerusalem para aí se recensearem dando cumprimento a um édito imperial. A cidade estava a fervilhar de gente e não havia vagas nos hoteis e hospedarias. O parto deu-se à pressa e improvisadamente num estábulo edificado no interior de uma gruta em Belém.
- Que história tão mal engendrada. Essa é a história que me contaste esta manhã, lá do tal Mithra.
- É muito parecida, não é?
- Pois! Mediador, filho do deus e de uma virgem, nasce numa gruta, aposto que nasceu no dia 25 de Dezembro como o outro!
- Sim e não.
- Muito gostas tu desses àpartes. Em que ficamos: sim ou não?
- Sim e não, como já te disse. Tudo aponta para que tenha nascido a 6 de Janeiro. Mas no ano 353, o Papa Libério deslocou a data para o dia 25 de Dezembro justamente para obscurecer as comemorações do nascimento do Sol dos pagãos, ou de Mithra, se quiseres.
- Que história engraçada. Vocês humanos gostam de inventar muitas histórias diferentes para contar sempre o mesmo. Essa trapalhada com as datas é mesmo gira.
- Então não é? Imagina qu no Egipto prestou-se culto a Osiris que teria nascido no 361º dia do ano, ou seja em 27 de Dezembro. Tal como Mithra, Osiris andou a viajar por esse mundo fora e quando regressou ensinou aos homens as artes civis e revelou-lhes a descoberta do trigo e o vinho.
- Então o que é que aconteceu ao tal Jesus?
- Teve uma vida deveras atribulada. Logo nos primeiros dias de vida, os pais tiveram que fugir com ele para o Egipto porque o Herodes, o rei judeu mandou matar todos os miudos nascidos naqueles dias.
- Grande velhaco! O homem era chanfrado!
- Tinha era uma paranóia de todo o tamanho. Haviam passado por lá uns magos que vinham atrás de uma estrela nova cujo aparecimento anunciava o nascimento do rei dos reis...
- Lá foste tu buscar os magos à história do Mithra. Mas não lhe aconteceu nada, pois não?
- Pouco se sabe da sua infância e juventude. Em adulto parece ter-se juntado aos essénios, uma seita rival dos fariseus e dos saduceus, que pregavam doutrinas pouco alinhadas com a tradição.
- Um radical, está-se mesmo a ver.
- O que lhe fez custar a vida. Os judeus tradicionalistas armaram-lhe uma cilada e ele acabou por morrer pregado numa cruz.
- E assim acabou a história de mais um revolucionário.
- Não precisamente assim. Depois de morto e sepultado, expiou os pecados da humanidade, ressuscitou ao terceiro dia e elevou-se aos céus onde está sentado à direita do pai e rodeado dos seus doze apóstolos.
- Ahahah. Tu és um grande humorista. Não vês que te baralhaste todo e contaste outra vez a história de Mithra?
- Vejo que não percebeste, gato tonto. Esta é a história de Mithra, é a história de Osiris, é a história dos gregos Apolo e Donísio, do romano Hércules, de Adónis e Atis, da Síria e da Frígia, de Baal e Astarte, da Babilónia e de Cartago, de Jesus da Galileia, é a história dos deuses solares de todo o mundo mediterrânico.

[Comentários]



Continuação das conversas com gatos (2 de Fevereiro de 2007)

- Depois da nossa conversa, andei a pensar...
- Andaste a pensar, felpudo?
- Andei a pensar na forma estranha como as ideias se formam nas cabeças dos humanos.
- Explica-te lá.
- Vocês pensam muito a realidade do mundo, da natureza, contando histórias.
- Mais ou menos. Chamamos mitos.
- Pouco me importa, são só palavras! Eu não uso palavras quando comunico contigo. Mas percebo que ficas mais calmo, quando escolhes uma palavra, e outras vezes ficas muito excitado, à beira de perderes as estribeiras, se escolhes outra. Não percebo a diferença pois acho que estás a pensar na mesma coisa... Ainda pensei que fosse defeito teu, mas já verifiquei que essa é uma característica comum do teu género.
- Tens razão. Mas olha que duas palavras nunca significam exactamente a mesma coisa.
- Achas? Quase me parece que defendes que é o encadeamento das palavras que origina o pensamento. Para mim, as palavras são apenas os sons muito complicados que os humanos emitem para comunicar. Vê lá tu que, só para te agradar, ando a miar muito mais. Quando andas para aí todo compenetrado a podar as sebes ou a apanhar ervas e não me ligas nada, basta eu miar uma parvoíce qualquer para ficares logo todo interessado. Depois, falas, falas. Vou-te dando uns miados de vez em quando, sobretudo quando deixas de me fazer festas no pelo. Já descobri umas toadas que funcionam muito bem contigo.
- Manipulador, interesseiro!
- Vês? Se estás irritado comigo, devias arranhar-me. Mas tu, não. Mandas-me com palavras. Acalma-te, pois, e diz-me lá qual é a diferença entre uma história e um mito.
- Bem, um mito quer dizer história em grego.
- Pois.
- Não me interrompas! Mas não é bem a mesma coisa.
- Não te estou a interromper.Estou, aliás, muito curioso. Vá!
- Mito é uma palavra que já não se usa muito, é muito antiga. Quando se usa esta palavra queremos expressar a ideia de que a história já foi engendrada há muito tempo e que se refere a acontecimentos muito antigos ou, mesmo, intemporais. Participam nestes acontecimentos tanto homens como deuses. E até animais, mesmos os ranhosos como os gatos.
- Passe o comentário, não é?
- Os mitos compõem-se geralmente de duas partes, mesmo que a segunda não esteja expressa: o enredo da história e a moralidade da história. As histórias não são contadas, porque sejam verdadeiras ou bonitas: as histórias são contadas para que se possa extrair uma lição. Um velho contador grego de mitos, o Esopo, acabava sempre assim as suas histórias: "ó mütos dêloi óti...", ou seja "a história mostra que..." Os mitos à volta dos deuses contêm uma lição tácita: Ou referem-se às origens e aos fins, ao valor ou às consequências das acções dos humanos, a conflitos de interesses, a qualquer coisa. Mas nada fica expresso, de modo a que cada ser humano possa interpretar o seu significado de uma forma pessoal. Nem sempre as coisas são assim. Devido à apetência dos humanos de manipular o pensamento, as emoções e as escolhas dos outros humanos, a maior parte das sociedades autorizou o aparecimento de uma classe social de intérpretes oficiais cuja missão é definir a interpretação correcta e única autorizada dos mitos e das fontes da revelação. À imagem e semelhança de deus, que separou a luz e as trevas, os intérpretes separam a ortodoxia das heresias.
- E como aparecem aí os outros animais?
- Os animais aparecem a falar.
- Ridículo!
- Quando os mitos gregos foram traduzidos, primeiro para latim, depois para romance, passámos a chamar-lhe fábulas.
- E já vão em três as palavras para o mesmo. Vocês deviam era experimentar dormir mais umas horas durante o dia.
- Claro que foi preciso encontrar mais uma palavra, pois não vês a diferença?
- Não.
- Animais que falam...
- E daí?
- Em latim vulgar havia duas palavras para dizer "falar"...
- Deixa-me rir.
- E as duas palavras eram "parolare" e "fabulare". Desta última derivaram as palavras portuguesa e asturiana "falar", a palavra aragonesa "fablar" e a castelhana "hablar". Noutras línguas novilatinas usava-se mais a primeira. Daí resultaram o "parlare" italiano, o "parrari" siciliano, o "parlar" catalão e o "parler" francês.
- Divertes-me imenso. Queres com isso dizer que as fábulas apareceram do lado de cá dos Pirinéus, do lado dos fabuladores? E que do lado de lá, do lado dos parladores, apareceram as párulas?
- Querias dizer parábolas... Mas não, foi exactamente ao contrário: as fábulas, onde os animais falam, apareceram do lado dos parladores, como tu dizes. Porque os animais, mesmo quando falam a mesma língua dos humanos, essa fala tem que ter outro nome. Do lado de cá, os humanos falam e os animais palram.
- Disparate! Mas voltamos aos mitos, está bem? Explica-me porque é que a mesma história é contada uma vezes de uma maneira, outras vezes de outra, mas é sempre a mesma: Mithra, Jesus, blá-blá-lá...
- São histórias de religiões diferentes.
- Sim, já me explicaste isso, mas continuo sem entender.
- E não entendes o quê?
- Ora, não entendo para que querem tantas religiões, não entendo porque é que cada religião quer ter a sua história, não entendo o porquê de tanta conversa.
- Se tiveres paciência, explico-te.
- ...
- Não são as religiões que fazem histórias diferentes porque as religiões não fazem histórias. São as histórias que fazem as religiões. As histórias contadas nos livros judeus, livros que em grego se diz "biblia", deram origem à religião judaica e a várias seitas judaicas, ao cristianismo nas versões ortodoxa, católica e reformista e ao maometanismo. Isto para ser breve, porque as divisões e sub-divisões, para usar uma expressão da bíblia, são mais numerosas do que as areias do deserto ou as estrelas do firmamento. Cabe aos rabinos, aos padres e, de uma maneira geral, aos intérpretes dos grandes mitos da humanidade compreender e revelar o significado oculto dos mitos. Daqui é que surgem as religiões: verdade única e quem não é por nós é contra nós... e corte-se-lhe a cabeça.
- Uf!
- Ah, pois é!
- Olha que percebi tudo: irra que vocês são frescos!
- É assim! Os persas tinham lá a sua religião, não sei onde é que a foram buscar, mas sabiam, como qualquer povo conterrâneo desde o Atlas até às montanhas da Índia, quando era e o que representava o solstício de inverno.
- O tal dia de Natal?
- Isso mesmo.
- A questão é que o Mithraismo contaminou as legiões romanas...
- Sim. E daí?
- É que o cristianismo primitivo também contaminava as classes trabalhadoras do império - os escravos, os servos, alguns patrícios mais conservadores das velhas virtudes republicanas - e era um movimento relativamente incipiente e, portanto, muito moldável.
- Sim?
- Mas não acaba aqui: o culto de Isis e Osiris estava bastante arreigado na aristocracia romana. Ora acontece que o império estava cheio de problemas e a arrebentar pelas costuras pela pressão exercida sobre as fronteiras pelos estrangeiros, os "barbaroi".
- Três religiões? Não é o que vocês humanos chamam um saco cheio de gatos?
- Foi o que pressentiu Constantino, um imperador romano. Como todos os imperadores, havia feito carreira militar; por isso, tinha prestado culto a Mithra. Mas sabia o peso e a influência do cristianismo nas classes produtivas sempre dispostas à rebelião. O patriciado e os aristocratas voltavam-se para Oriente. Para unificar o império, preciso seria amalgamar as religiões, o que era fácil porque elas tinham sempre algo que se podia pôr em comum, o culto da mãe dos deuses e do seu filho o deus solar. Constantino criou essa religião: abraçou o cristianismo e introduziu-lhe inúmeros elementos das outras religiões. Para criar uma religião verdadeiramente unificada e global ("católica") e acabar com as inúmeras dissensões entre os cristãos convocou um concílio para Niceia onde se definiram para a eternidade os dogmas do novo cristianismo.
- Então em que consistiam esses traços comuns desses cultos a que te referiste?
- Bem, já sabes. É aquilo que tu achas ser a mesma história quando as diversas histórias se mostram diferentes. No solstício do Inverno nasceu um menino que era filho do espírito de deus e de uma virgem humana. Vários sinais celestes atribuíam profeticamente grandes poderes ao menino o que pôs em pânico os poderes da altura que decretaram o puericídio generalizado. Os pais fugiram com ele para o estrangeiro. Reaparece mais tarde, é tentado e resiste aos poderes malignos. Faz milagres para ser aceite e seguído pelo povo. É morto,ressuscita, desce aos infernos e sobe ao céu.
- Mas disseste que Jesus não tinha nascido no solstício do Inverno.
- Pois disse. Mas com jeitinho passou a ser. E com jeitinho reescreveu-se, mais uma vez, a história do deus sol. Para ser contado todos os anos no Natal, como já era desde o princípio do mundo.

[Comentários]



A conversa que esteve em vias de desaparecer ... (7 de Março de 2007)

(Esta "conversa" deu-se há muito tempo, antes do carnaval, e não ficou registada porque o autor destas palavras caíu de cama com uma gripe monumental e teve, a partir daí, uma convalescência pertinaz que o derreou de corpo e de espírito. Parte da conversa, que foi mais longa do que aqui se narra, ficou esquecida, e outra teve que ser "reinventada". Em consequência, não voltei a ver o Tigre até ao fim-de-semana passado. Quando me viu, perguntou laconicamente: "não tens aparecido muito?". Retorqui-lhe que tinha estado doente. E ele: "Já estás bom? Ainda bem! Então vamos lá retomar os nossos diálogos porque deixaste-me aqui a pensar...". Mas disso falarei depois.)
- Fala-me mais disso das histórias
- Queres que te conte uma história?
- Talvez venha a querer. Mas, agora, preferia meditar sobre o mistério do pensamento humano.
- Interessa-te assim tanto?
- Sim, muito. É intrigante. As galinhas, os melros e as perdizes têm pensamentos pequeninos e redondos como os ovos; e não os conseguem encadear uns nos outros.
- Falas muito com essa gente?
- Raras vezes, pois não têm assunto que me interesse. Prefiro escutar o pensamento dos sobreiros ou dos carvalhos, que é rigoroso e lento, mas sólido e profundo.
- Gostava de saber escutar melhor o pensamento das árvores.
- Terias que ter uma disponibilidade maior, terias que reservar-lhes um tempo de que não dispões, sempre a planear, sempre a executar tarefas, a comer à pressa, a dormir só à noite e pouco.
- Nós temos as palavras. Quando as dizemos, elas atravessam o tempo numa sequência curta e vão ficando para trás, no passado. Se não precisarmos mais delas, desaparecem. Depois dizemos palavras novas que colamos às anteriores e que desaparecem também.
- E se não as quiserem esquecer?
- Se não as quisermos esquecer, escrevemo-las.
- Compreendo: usam as palavras para fixar a realidade. Mas como as palavras são mais voláteis que a realidade convertem-nas em coisas para as fixar.
- De certo modo, assim é.
- E conseguem, dessa maneira, que a realidade seja mais extensa do que a própria realidade. Porque à realidade, que é, por exemplo, a minha, acrescentam a realidade das palavras.
- Temos, antes de mais, que decidir o que é a realidade a que nos estamos a referir. Para ti a realidade é a "natureza", que é, como escreveu um dia um grande filósofo humano, "a totalidade de todos os objectos da experiência". A tua realidade é a totalidade do que tu experimentas. Nós, humanos, expandimos a realidade a todos os objectos que nos são dados no discurso.
- Estás a dar-te ares de pessoa importante. Para vocês humanos, é importante julgar que vivem, para além da vida na realidade, uma outra vida nessa outra realidade que é a das palavras: romances, drama, cinema, televisão, computadores, circo, jogos, desporto, "media", teorias, negócios, política, marketing, ciência, religião, baptismos, casamentos e funerais. Vivem tão arredados da realidade a que chamas "natureza" que a vida que experimentam viver vos parece intemporal. Tudo o que é humano centra-se à volta da morte. E cada um de vocês comporta-se como se for imortal.
- Não se passa o mesmo convosco?
- Ah!Ah!Ah! Conosco? Sabes bem que temos 7 vidas? Dá muita pica perder uma vida; sobretudo sabendo que à sétima acabou-se. Viver, para nós, é o arrepio de passar as patinhas pelo fio da navalha. Viver, para vocês humanos, é contar grandes mentiras: umas vezes, solitariamente, quando imaginam o que serão, quando reescrevem a história do que foram ou quando ficcionam os papéis que actualmente representam; outras vezes em ninhada, contando com ar sério uns aos outros, convictamente, aquilo que todos sabem ser mentira.
- Não se pode falar contigo, peludo!
- Sabes bem que não podes falar comigo, porque eu não falo. Mas, em contrapartida, sabes que podes pensar comigo que é aquilo que não consegues fazer com os teus congéneres.

[Comentários]



De quando perdido fez nova amizade (23 de Abril de 2007)

Andava, não sei se a mondar, não sei se a ceifar - porque a ceifa, dizem, é de cereais e a monda, de ervas daninhas - quando ouvi um tonitroante coaxar. Não me pareceu vir daquela coisa verde de cerâmica que trouxera do Palais de la Découverte, com painel solar às costas e voz de rã de falsete ao passar-lhe um corpo móvel pelas beiças. Apresentava uma claridade sonora comparável à da imagem visual de muito alta definição. Era também de uma agudeza acústica tão fina como um florete de luz fria a trespassar o corpo. Fui ao lago ver. Nada.
Seria, fora de quaisquer dúvidas, uma daquelas miragens acústicas que exprimem o desejo de comunhão das almas solitárias. De gadanha nas mãos fazia-me às ervas uns passos à frente. Dizem que para a frente é que é Lisboa, não sei porquê, reconheço que não sei mesmo porquê, e nem adivinho porquê Lisboa. É um objectivo, uma visão que nos norteia (mas se estou a norte de Lisboa porque não hei-de então estar a norte de todos os meus objectivos como Afonso filho de Henrique quando virou costas à mãe e foi espadeirar a mourama?). É que a coisa está mesmo no andar para a frente e não olhar para trás, como a mulher de Lot. Persistir no esforço e na disciplina do querer e só olhar para admirar a breves trechos a transformação operada pelo nosso acto, seja tranformar a selva num jardim, seja outro acto heroico clandestino do nosso quotidiano.
Estas coisas vai a gente pensando, quando a tarefa é árdua e longa. Os pensamentos são o ópio e o lenitivo da fadiga dos músculos e dos ossos. O tempo não é a medida da acção que passa, é o encurtamento da distância. Vais na A1 para o Cartaxo e pensas: faltam 20 Km, faltam 10 Km... Viras à direita e estás quase na portagem. Depois tomas a estrada para Almoster (Al Monasterium), um dia voltarás para ver o mosteiro e deixares-te intoxicar daquela neblina medieval que o rodeia.
Estamos nisto, a pensar as ervas com os braços, a mondar o tempo com a mente, e o coaxeio irrompe de novo criando todo um grandioso silêncio à sua volta para se evidenciar.
Ele há rã.
E ao fim de mais três tentativas, havia. Imponente, expunha-se ao sol em cima de uma folha de nenúfar. Espreitei-a de todos os lados do lago, ora furtiva, ora ruidosamente. E ela ali estava pespegada indiferente aos meus desconjuntados arremedos de truão.
"Fica-te aí", disse-lhe, dirigindo-lhe o pensamento.
E lá fui a correr para casa à procura da minha Nikon digital. E regressei a correr directo ao lago testando as pilhas, a objectiva, a posição do selector. Lá estava ela, castanha sentada em verde, postada em atitude hierática como a esfinge do Nilo. Pareceu-me ter feito um breve sorriso quando disparei o flash. Continuou imóvel, rodando apenas os olhos, em pose de modelo.
Passados instantes (o instante é a eternidade misturando-se no tempo) conversámos.

[Comentários]



A dama do lago (20 de Junho de 2007)

- Que susto! Que grande animal és. Assustaste-me com tamanha sombra…
- Ah! Eu sou um bípede chamado humano. Sou um homem.
- Muito prazer, eu sou a Dama do Lago.
- Ah ah ah! Mangas comigo?
- Ai! És sempre assim, grosseirão e insensível com as senhoras? Primeiro, apareces sem te apresentares, com esses modos pouco galantes. Depois, zombas do que te digo, deixando no ar uma vaga sugestão de dúvida. Como se a minha palavra para ti de nada valesse…
- As minhas desculpas, nobre senhora. Se apareci assim, sem me anunciar, é porque cuidava estar sozinho. Sorte foi não ter libertado aqueles humaníssimos sons corporais, muitas vezes acompanhados de cheiros detestáveis e severamente reprovados pelos sócios humanos.
- Penso que sei do que estás a falar; os gatos fazem muito essas coisas quando se debruçam no lago para se dessedentarem. Isso não é nada que me impressione.
- É claro que és uma dama. Permita-me, Vossa Senhoria, que lhe tire o chapéu e lhe renda as minhas homenagens. Agora, do lago … com franqueza! Convenhamos que é demais.
- Não tem nada de mais. Nasci aqui no lago e aqui estou desde que o mundo é mundo.
- Ai, essa é que não: perdoa-me, mas eu fiz o lago só há 3 anos e tu apareceste por cá há uns dois meses vinda eu sei lá de onde.
- Mas o lago não está cá sempre? - Perguntou a chorar – E eu não nasci aqui?
- Não – disse baixinho, incomodado como fico sempre na presença de choros femininos – O lago não está aí sempre. E eu julgava que tivesses aparecido por aí aos saltinhos vinda de outro sítio qualquer. Se calhar és a única sobrevivente daqueles “peixes-cabeçudos” que trouxe numa garrafa da terra do Zé Paulo. Sei lá. Do nada não nasceste tu, com certeza.
- Pensava que eu e o lago fazíamos um. Afinal, sou apenas uma passageira mais de um barco que não vai para lado nenhum. Estou chocada e profundamente triste.
- Não vale a pena, duquesa, afinal todos nós viajamos à boleia numa nave perdida no nada, onde entramos e de onde saímos sem ninguém a perguntar-nos qual é a nossa vontade.
- Triste natureza a nossa, destino cruel, vida desprovida de qualquer valia – proferiu em tom declamatório.
- Hum! Olha que a vida são dois dias e já lá vão três – Disse para a confortar, usando a estafada pilhéria dos meus tempos de escola e pensando para com os meus botões “não só não vai perceber a graça, como a vai confundir”.
- Grande aritmética, sim senhor – interpelou a cobra branca, que entretanto aparecera por ali – Eu só tinha um dedo quando aprendi a contar.
- Ah! És tu, salsicha rastejante? Vens aqui para me examinar?
- Não, mas não podia deixar de te ouvir. Não imaginas como me maravilha esse teu jeito para entreter as senhoras com cantigas da treta, sabendo que é a melodia da tua voz que as encanta.
- Cada um tem os seus encantos. Não te vejo muitas vezes a fixar os olhos no meu olhar para me aturdir? E porque te enovelas em sucessivos anéis, sabendo o poder sensual que as tuas curvas exercem numa alma sensível e desamparada?
- Deixa-te de habilidades e de conversas de serão de aldeia. Comigo não pega. Vira-te antes para aquela, que tem a mania que é nobre e dona da choldra de lago que fizeste. - E, dizendo isto, virou-me as costas, e pôs-se a andar dali para fora.
Foi então que, reparando na rã, me apaixonei por aquelas perninhas curtas e gorduchas. Que saudades tenho naqueles dias em que me ausento e passo a contar os que faltam pelos dedos.
Quando lá estou, a apanhar mato, a regar ou a podar rosas, ouço-a a coaxar. Parece que se esganiça toda para se fazer ouvir. Quando é noite sinto-me a abafar e abro as portadas para vir ao alpendre apanhar ar. Pressentindo a minha presença, a minha dama emite gritos lancinantes que se perdem na noite entre as estrelas.
E eu sei que não estou só num universo vazio.
E que a vida não é uma viagem à toa no meio do nada.

[Comentários]



Novas visitas no jardim (25 de Julho de 2007)

Faz uma semana, fomos visitados por um novo personagem. Era de manhãzinha ainda fresca e estávamos a preparar o pequeno almoço na cozinha. Passeava-se calmamente alisando a plumagem, dava uns pulinhos aqui e ali, correndo em todas as direcções e regressando sempre ao mesmo ponto onde esgaravatava a areia com o seu bico comprido. Estava tão bem consigo própria que nos mandava umas olhadas pelas vidraças da janela a confirmar se estávamos ali a admirar a sua beleza. Confesso que nunca conheci pássaro mais vaidoso nem tão seguro da sua própria beleza. Deu tempo para ir buscar a máquina e tirar uns instantâneos. Apesar da distância a que se encontrava deu para recortar o detalhe que exponho neste post.
Não chegámos à conversa, é bem de ver. A meio da tarde, perguntei ao lagarto do calhau ao lado da terceira palmeira se a tinha visto. Estava curioso e quis saber se ele tinha falado com a poupa. "Falado?", exclamou ele com desdém, "Com gente daquela não se fala. Assim que a vi, fui-me pôr debaixo do calhau e só de lá saí uma hora depois de ela se ter ido embora".
Percebi, então, que entre os bichos também há gente que vive voltada de costas uns para os outros. De costas é como quem diz: de costas bem protegidas não vá o diabo tecê-las.

[Comentários]



A estranheza do Outono ( 3 de Outubro de 2007).

Vou mudar-me de "perdido" para "distraído".
Ando em ronda pelos blogues que costumo frequentar (um trago aqui, um trago ali, e lá vou eu a desoras, a cambalear, para casa) e não é que todo o mundo fala de Outono.
Mas porquê? se ainda falta quase um mês para acabar o Verão, cogito.
Cheguei ao Sítio do Poema, da Licínia Quitério, e quem me abre a porta? (estranheza) O Outono!
“Não há coincidências”, disse alguém, anónimo, no fundo da minha cabeça. Adicionei mentalmente três dedos ao mês de Junho (que é para mim o portal das estações) e disse um "ah" bem gritado no silêncio rotineiro no oco habitual da cabeça - máquina de pensamento perpétuo - "Ah!"
"ESTRANHEZA".
Realmente o tempo tem-se portado como tal. Ontem estava a pôr argamassa para remendar a parede de um canteiro e escureceu, relampejou e desmoronou-se uma bátega olímpica de água sobre a natureza à minha volta e, claro, sobre mim, que fiquei que nem um pinto (nunca percebi porque é que os pintos têm a desdita de andarem sempre molhados. ainda se fossem os patos, compreendia-se). Disse alguns impropérios ao Verão, que ardilosamente me atraiçoara.
Que cabeça esta! É o Outono da vida! É o Outono da minha estranheza.
À noite sentei-me no chão do alpendre a ver os raios no céu, por cima dos carvalhos. Ao meu lado a Maria, afastada para aí dois passos, que não se dá muito a confianças - distingue-me com a sua presença, mas não se aproxima nem conversa comigo. Está ali que nem uma esfinge, sentada sobre as patas traseiras e limita-se a olhar para os mesmos sítios para onde eu olho. “Estás a ver, Maria? Até parece que já estamos no Outono”. Ela, nem sim, nem sopas, lá continuava a olhar para o raio dos raios como quem topa um fogo de artifício na amurada da baía.
É muito triste um gato não ter a capacidade de contraproposição. E com um pouco de indecoro, não só me desdizia, como punha a nu e a ridículo a minha idiotice. E voltaria o olhar à sua volta à procura de apoio para o seu sarcasmo. E só parava quando eu me sentisse miserável, infeliz. Mas não. Está ali. Parece que só procura a minha companhia. Não sei se isso lhe dá prazer. Não sei se ela sabe alguma coisa do que é prazer. Ela não fala.
A Maria não é humana.

[Comentários]



A curiosidade matou o gato? (in Neste Lugar)

A pré-ocupação gera o cuidado (cura) e este devém inquietação, necessidade de saber e inspecção diligente, o curius.

Como já afirmei, o fito da exploração é conduzir-nos à disponibilização de novos lugares. O tema de hoje - a curiosidade - pretende desvelar o mecanismo que nos move à exploração e desmontar a sua arquitectura para compreender o seu funcionamento e eficácia.
Quando se avalia, globalmente, o rendimento intelectual de uma criança, medido em termos de desvio em relação a um padrão etário de desempenho, tem-se em conta a extensão do vocabulário que ela compreende e é capaz de definir verbalmente. É um excelente indicador do nível da sua curiosidade e, indirectamente, um preditor do desempenho de que ela é capaz. Não se pode usar este protocolo com um gato jovem pela razão de que um gato não fala. Mas, como todos sabemos, há outros recursos para entrar em comunicação, quer com os gatos, quer como bebés de tenra idade infantes. De um lado, os recursos tecnológicos verdadeiramente simples de que as ciências do comportamento proveram os investigadores; do outro, os recursos poéticos com os quais, desde a sua alvorada, a humanidade tem comunicado com os bebés, os gatos e os demais entes que partilham a nossa companhia.
Dizer que os gatos são curiosos é um truísmo. Se os gatos pertencem de iure àquele lugar que designamos de humanidade, tal se deve, mas não exclusivamente, à complexidade da sua curiosidade. Gatos e homens irmanam num elevado grau de curiosidade.
A observação mais descuidada põe a curiosidade dos gatos bem no centro, em plena zona focal, da nossa atenção. Na quarta-feira passada andava a arrumar à pressa o meu lugar no Cartaxo para vir passar descansadamente o resto da semana ao meu lugar em Lisboa. Tinha acabado de lavar a loiça do almoço e estava a passar o chão da cozinha com a esfregona. Naturalmente, tinha a porta da cozinha, que dá para o jardim da entrada, aberta. Os gatos mais novos rebolavam-se na areia enovelando-se uns nos outros e interrompiam os seus jogos de cabra-cega e de escondidas para se amandarem de sopetão e em voo rasante sobre os mais velhos que imperturbavelmente esfingeavam solenemente na areia quente do jardim. O Mião postou-se na soleira da porta e, de lá, seguia todos os meus movimentos com os olhos e a cabeça. Exagerei o trajecto e o movimento da esfregona ao que ele correspondeu com o exagero do olhar. Se parava a esfregona, parava a cabeça dele e só movia o olhar para o balde seguindo atentamente o meu esforço para torcer a esfregona. A alturas tantas, passei a limpar a área adjacente à porta da cozinha e o Mião, adivinhando o percurso iminente da esfregona, esticou-se, ostentando um ar incomodado, e, lentamente, saiu porta fora ficando na rua a monitorizar a minha ocupação. Assim que ultrapassei a zona da porta voltou de novo ao seu local habitual de atalaia e continuou a inspeccionar-me diligentemente. Pressenti atrás dele o Bolinha e o Ratito a perscrutarem com os seus olhos esbugalhados tudo em que consiste a cozinha com os seus espaços, o seu mobiliário e equipamento e os infindáveis tarecos que povoam aquele inconfundível lugar humano.

Com o chão da cozinha a mostrar um aspecto muito razoável, e começando a água do balde a ganhar as cores indefinidas da sujidade, decidi aproveitá-la, enquanto possível, para lavar a tijoleira do pequeno alpendre da porta da entrada. Procedi às operações, despejei a água já num estado inconveniente, e dei a volta à casa para entrar pela porta da cozinha. O Mião, ao ver-me, deu às de vila diogo. Entrei e fechei a porta.

Não passara ainda o tempo de dizer um ai quando ouvi dois miados angustiados: eram o Bolinha e o Ratito que tinham ficado enclausurados dentro de casa. Para os leitores que ainda não provaram muita intimidade com os meus gatos, devo esclarecê-los que estes bichos só viram como tecto, em toda a sua curta vida, o céu azul e a barriga bojuda do tanque de lavar roupa adornado nas traseiras do "Anexo". Os pelos todos em pé, as gargantas estridentes, o susto estampado no rosto, os coraçõezitos a badalar desesperadamente nos peitos peludos, aqueles gatos metiam dó. Tentei pegar neles mas só piorei a situação. A tentar fugir-me, escorregavam de pernas abertas sobre a tijoleira ainda molhada parecendo aprendizes muito incipientes de patinagem no gelo com os patins a fugir para os lados opostos. Ao fim de algum tempo, depois de ter o discernimento de lhes abrir a porta da cozinha, fugiram parecendo que levavam o demónio atado nos rabos.
Continuei ainda uns tempos a minha azáfama de pôr em ordem a casa. Ao vir do banho para o salão pressenti uns sons meio abafados a que não dei grande importância mas que me forçou a convergir o olhar para baixo do móvel da televisão. No escuro, quatro olhos intensos fixavam os meus movimentos.

[Comentários]