Pondo a coisa a claro, os meus seguidores são a mãe Ratita e os seus dois filhos, o Fofinho e a já mencionada Farrusca, também conhecida por a Bailarina.
Tem, cada um, características que lhe são exclusivas o que faz deles Pessoas. Assim mesmo: com um P grande. E as marcas a que me refiro não são físicas, são morais.
A Laranjinha é, de seu particular, uma excelente caçadora, gata vadia, ladra atrevida e rufia. De pequena vinha comer com os seus irmãos da comida de lata que lhes punha nos pratos. E ficavam por ali no repasto sob o olhar vigilante da Maria - sempre com um olho nos perigos distantes e o outro posto em mim - tão próximos que me permitiam uma, quando muito duas festinhas nos pelos sedosos. Não a Laranjinha, que me mostrava os dentes e arredava. Numa das minhas infelizes abordagens àquela pequena fêmea, tão arisca e tão cheia de personalidade, deitou as gadanhas à mão que a tentava acariciar e puxou como quem esventra um coelho. Tendo a mão ensanguentada e ferrada, dei-lhe um piparote com a outra disponível e projectei a gata à distância de umas duas ou três passadas largas. Daí para cá olhamo-nos com desconfiança e distanciamento.
As gatas engravidam ao mesmo tempo e permanecem próximas com as suas ninhadas para se auxiliarem mutuamente. Não misturam as crias no mesmo ninho mas ficam por perto umas das outras. Quando há movimentações, e todos os dias é preciso ir à caça para satisfazer doze pequenas bocas, revezam-se nas funções de caça e de guarda. Juntam as ninhadas no sítio com maior protecção e, enquanto uma as protege, muitas vezes auxiliada por um pai que sabe quando há-de aparecer, a outra sai para uma incursão venatória. As refeições são diversificadas: na maior parte, a dieta é coelho. O desgraçado é aberto e despido da sua manta de pelo, são-lhe abertos alguns orifícios nos locais apropriados, e vai sendo esvaziado, primeiro do sangue, depois da gordura, das vísceras e, finalmente, da massa muscular já cozinhada pela exposição ao ar livre durante dois a três dias. As variantes são os melros, outras aves, cobras e lagartos. Nas fase de transição entre a aleitação e uma maior mobilidade dos gatinhos, o sítio fica um chavascal pejado de ossos, penas, pelos, escamas. Ratos e ratazanas já há muito que os deixei de ver. O que vejo, sim, é as gatas sempre de atalaia ao pé da fossa.
À medida que crescem, as crias vão diminuindo em número, geralmente de seis para duas, para cada gata. Não ficam vestígios no local, é para mim um mistério ainda por desvendar. As gatas não parecem muito incomodadas com o desaparecimento. Mas, no final de fase, tornam-se mães galinhas e andam sempre com o coração aos pulos em cima dos dois meninos jesuses restantes.
Das duas, a Laranjinha é a caçadora mais eficaz, assim como a Ratita se especializou na maternage. Enquanto a Laranjinha faz a sua sortida, a Ratita junta os quatro ou cinco sobreviventes no espaço entre o contentor e a sebe e fica por ali a espreitar, nunca se deixando adormecer. Se estou por ali, conversamos os dois, mas fico sempre do lado do anexo e ela do lado do contentor. De vez em quando aparece a Laranjinha com um coelho com o dobro do seu tamanho na boca. Sempre em corrida, surge vinda dos lados da horta, passa em corrida entre a irmã e a sebe e manda com o coelho contra o contentor, desaparecendo velozmente na direcção do terreno do meu vizinho Paulo. Não é dizer que a Ratita não seja boa caçadora. Estou só a afirmar que a Laranjinha é uma caçadora olímpica.
Quando dou comida de lata aos petizes, elas autorizam-me que eu passe as tigelas pela sebe e dispõe-se uma de cada lado a proteger cada entrada do túnel formado com o contentor. Têm uma organização tipicamente militar que, muito inteligentemente, dá prioridade à segurança e à diminuição do risco. E enquanto aquele pessoal não cresce a confiança dada aos amigos bípedes é parcial e condicional.
Quando estão todos à mesa do banquete que lhes proporciono uma vez por dia (para não se desabituarem de caçar), o pessoal, maior e menor, anda por ali à vontade e eu misturado no meio deles, às vezes com vontade de dar uma trinca nos pedaços de coelho com bom aspecto misturados com ervilhas e cenouras estufadas cortadas aos pedacinhos. A Laranjinha não se mistura. Fica por perto com um olho em mim, outro nas tigelas e nos comensais. Inesperadamente, lança-se em jacto sobre uma das tigelas que tem uma folga para mais uma cabeça, arranca três ou quatro pedaços de carne e vai comer para longe. Só sabe caçar e roubar.
[A fotografia é uma das raras em que aparece a Laranjinha. Quando lhe aponto a máquina e disparo, só fica registado o rabo. Nesta, tirada em 30 de Outubro do ano passado, ainda era jovem. É a que está a comer: vê-se bem a manchinha laranja entre as orelhas]
5 comentários:
Muito prazer, Laranjinha. Gostámos de saber da tua actividade por esses lugares de pessoas, bichos e tremontelo (por esta ou outra ordem).
Por aqui, estamos bem. Gordinhas e quentinhas que o nosso lugar é pelos salões ;)
Bom fim de semana, como dizem os humanos.
Oin e Pequenina
Isto é um tratado sobre comportamento felino, mas com um enormíssimo envolvimento afectivo. Onde raio anda o distanciamento científico??
( o Black é um príncipe)...
... gosto de gatos mas actualmente não tenho nenhum. O último finou-se de um modo que me encheu de remorsos e jurei que enquanto não me esquecer do Mantorras (um gato de pelo totalmente branco e que de semelhante ao jogador da bola apenas tinha a patada certeira e a unha afiada), não entra mais felino algum no apartamento de nono andar.
Pois foi. Uma janela aberta descuidadamente e um voo picado que acabou dentro da caixa de carapaus fresquinhos que o Ernesto - empregado do "Tem-de Tudo" Mini-Mercado onde me abasteço de alguns víveres, tranportava no porta-paletes. O Ernesto apanhou um cagaço dos antigos e acho que o Mantorras morreu às portas do Paraíso dos Gatos: enfeitado de carapaus por todos os lados. Agora só me resta um animal doméstico que não me passa cartão (nem eu a ela): uma enorme barata loira (aquilo até parece mais pró platinado!) que se passeia provocante por cima da minha cama e que me olha cheia de desejo quando acordo. Não leva nada daqui que segundo me confessou o anterior residente, a "beleza" tem apenas catorze anos. Mas tem cá umas asas!!
normalmente as gatas matam uns quantos filhotes (vá se lá saber porquê. também, com tanto gato a nascer)
Tinha estado para aqui no 1º dia, a ler, abaixo e acima, lembrando-me de já ter lido a história da Julieta e do contentor, juntando-lhe agora o carácter de outros e outras ...esqueci-me de comentar
...nem ao menos mandar um abracinho ...
Toma, leva lá dois, pela ternura que me aqueceu os olhos.
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